Expressões de Vida

Nilza Knechtel Procopiak

Filiada às ABCA/AICA – Associações Brasileira e Internacional dos Críticos de  Arte e da  ANPAP – Associação  Nacional  dos Pesquisadores em Artes Plásticas – Comitê de História, Teoria e Crítica de Arte.

 

Linguagem artística – são duas palavras muito usadas nas artes visuais para designar a individualidade do trabalho de um artista. Entretanto, raras vezes este binômio é tão bem empregado quanto na obra extremamente pessoal de Marcelo Conrado. Isto se explica pelo fato de sua arte ser a representação viva e sintética destas mesmas palavras.

Um artista com bases firmemente ligadas à contemporaneidade, ele trabalha com uma série de elementos abstratos, delineados e já incorporados na obra, aos quais continuamente acrescenta novas configurações. Estas também vão ser absorvidas em sua linguagem e virão aflorar novamente, desenvolvendo uma espécie de moto-contínuo de criação, sempre avançando por uma gama infinda de variáveis na composição. 

 Ao contrário da obra do lituano Mark Rothko, 1903-70, que influenciou uma geração de artistas, e na qual a abstração formava campos de cor estáticos que se fundiam gradualmente uns nos outros, Conrado trabalha com o movimento e os limites. Neste aspecto, as linhas e os traços ocupam um dos principais papéis na sua linguagem, dividindo o espaço com padrões, manchas e enfatizando as fronteiras da composição, na qual formas interpenetrantes estão continuamente interferindo umas nas outras. A mútua interferência cria no suporte uma teia de configurações entrelaçadas, que dão sentido de profundidade à obra, nela deixando rastros que percorrem caminhos como se fossem mimeses da própria e inexorável existência humana, frente a inúmeras possibilidades de escolha.

Registro da passagem dos materiais – tintas e pincéis – utilizados pelo artista, estes mapas humanos também incorporam qualidades intrínsecas à obra, provenientes dos movimentos da mão do pintor durante seu trabalho: os vestígios da passagem humana. Portanto, eles surgem como resultado do gestual do pintor, fundamentando sua expressão artística, ao mesmo tempo em que sua energia corporal se transfere para o papel através das linhas e das formas, ambas abertas e permeáveis. Assim, espontaneidade e rapidez de execução, movimentos, ora compassados, ora arrítmicos, são imanentes ao momento da elaboração e permanecem integrados à obra.

Seus trabalhos ressaltam a fluidez e o grafismo dos traços – características que têm raízes no desenho – e dali derivam para uma obra que se ocupa do espaço e da profundidade, além dos próprios materiais utilizados. É uma pintura-gráfica depurada, nervosa, que possui uma qualidade muito forte em sua auto presença como obra de arte. Ela se corporifica e se representa nela mesma, pois lhe subjaz uma linguagem que, apesar de não ser um código de significados, não deixa de se constituir numa gramática de formas.

As pinceladas passam a configurar uma composição estética que indica claramente a questão da autoria, mesmo naquelas obras que se afastam um pouco da expressão em comum e cuja similaridade só pode ser detectada em pontos específicos. Entretanto, sua arte é tão marcante, que estes pontos escassos são mais do que suficientes para o imediato reconhecimento. O mecanismo pelo qual ele denota sua autoria é difícil de ser manejado. Não há nenhuma obra igual à outra, mas todas compartilham de um mesmo território. Ele utiliza códigos abstratos que se referem, se não a ele mesmo, à sua linguagem artística. Pode parecer uma redundância o que está aqui escrito, mas não é. É, isto sim, extremamente árduo o desenvolvimento e conseqüente  aquisição de um ferramental como este, pois ele é constituído da linguagem da pintura somada à da expressão não figurativa. Nela deve haver uma coerência de formas, de aplicação de tinta, de traçado, de gestual, de modo que a própria composição passe a assinalar, não somente a questão da autoria como a da seqüência, da seriação, da plástica. Olhando uma pintura de Conrado e conhecendo sua obra, imediatamente a identificamos. Em outras palavras, sua pintura traz em seu âmago a questão da autoria. Âmago que pode ser duplamente definido: como componente da pintura e como referente ao próprio íntimo do artista.

A ausência de cores contrastantes ou fortes e a persistência de um padrão monocromático acrescenta – em vez de tirar – mais uma qualidade ao seu trabalho. Pois bem, se a paleta colorida facilita o trabalho dos artistas pela variedade das cores nas obras, diferenciando-as umas das outras, Conrado – ao prescindir voluntariamente deste recurso – faz com que lhe seja muito mais difícil manter a identidade de suas pinturas.

Comparando com a música, eu diria que suas obras se assemelham a uma série de sinfonias compostas como variantes do mesmo tema, cabendo ao artista a complexa tarefa da sutil diferenciação entre cada uma delas, uma vez que a diversificação fica restrita aos exíguos limites auto impostos.

Interessante notar que o tcheco Františec Kupka, 1871-1957, ligado à abstração do Orfismo, comparou as formas não-objetivas com desenvolvimentos na arquitetura, música e até na semântica. Disse ele: "Fugas, nas quais as notas surgem como reais entidades físicas, entrelaçam-se, vêm e vão." (1) A abstração presente nas obras de Conrado tende então, cada vez mais, a se afirmar como essência, ou síntese dos conhecimentos artísticos adquiridos somados às pesquisas efetuadas ao longo dos anos pelo pintor. O artista nos apresenta então, as novas abordagens, os novos ângulos das formas provenientes deste repertório e re-elaboradas por ele, segundo sua linguagem artística.  Formas estas que, correlacionadas a reminiscências, associações mentais, memórias, tempo, espaço e movimento embutidos nos trabalhos, sugerem a presença humana. Assim, suas linhas e superfícies na pintura são expressões de vida, denotando algo semelhante a alguns aspectos da obra em desenho vivencial de Joseph Beuys .

Conrado é um artista que também nos propõe um enigma. Em suas obras há sempre algo de misterioso, não revelado. Ao lado da gramática de formas, há uma outra espécie de charada onipresente e que, na verdade, nos permite uma descoberta: a linguagem artística do pintor se traduz como uma verdadeira escrita. Não no sentido de fraseologia ou de texto mostrando seqüência de palavras, mas no modo como ele organiza e joga com as formas, manejando seus pincéis. Se numa frase gramatical temos o sujeito, verbo e complemento, em sua obra encontramos também suas respectivas equivalências. Esses elementos se distribuem no espaço e se arranjam tal qual sentenças pintadas em artes plásticas, transformando os trabalhos em paráfrases, ao apresentar inúmeras soluções para as composições e formas. 

Dois fatores que contribuem para a arte de Conrado são o repertório do artista, já citado, e o próprio tempo. Seus trabalhos são resultado do momento, do tempo gasto pelo artista na elaboração da obra. É na sucessão de momentos que as obras são criadas, uma após a outra, e nascem distintas, pois um segundo transcorrido representa uma nova abordagem; próxima, porém diferenciada. 

Outro aspecto a ser destacado é que a sua pintura não é obra do acaso. Ela é proveniente de estudo sistemático, e nela o acaso somente se manifesta como uma concessão permitida, de vez em quando, pelo artista. Do mesmo modo, Conrado consente uma certa liberdade à inspiração, porém de um ponto em diante, ele reassume seu lugar e passa a ordenar seus signos abstratos na formalidade. Segundo Fayga Ostrower: “Em cada ato nosso, no exercê-lo, no compreende-lo e no compreender-nos dentro dele, transparece a projeção de nossa ordem interior... Nessa busca de ordenações e de significados reside a profunda motivação humana de criar; trata-se de possibilidades do homem que correspondem a necessidades existenciais. Impelido a compreender, o homem é impelido a criar. Ele precisa ordenar os fenômenos e avaliar o sentido das formas ordenadas, precisa comunicá-lo a outros seres humanos através de novas formas ordenadas.” (2)

Porém, ao lado da coerência da arte elaborada formalmente, a geração de suas pinturas se mostra também como um processo de pressentir e pré-sentir as formas, retirando-as desta espécie de limbo da criação, definido como a sensibilidade. 

Apesar desta influência do sensível na obra, o artista não opera com um outro aspecto relacionado às sensações, que é a predominância do inconsciente. Não há nada equivalente ao automatismo de André Breton, com sua escritura automática e sem controle por parte da razão. Em Conrado, sua arte é abordada de modo racional e se aproxima da montagem fílmica, equiparada ao que fazem os cineastas ao selecionar partes específicas da filmagem para levar à tela.  "A Arte não é a aplicação de um cânone de beleza, mas aquilo que o instinto e o cérebro podem conceber além de qualquer cânone." disse Picasso. (3) O processo seletivo do cinema ocorre após o trabalho dos atores e da filmagem, porém, em sua pintura, a escolha não acontece nem previamente e nem a posteriori. Ela é sincrônica à interferência, o que significa que a ação do gestual acompanha a criação. 

Também, ao contrário da Arte Informal, dos anos 50, mais relacionada ao impulso subconsciente do que a alguma idéia, esquema ou desenho pré-concebido, a linguagem de Marcelo é uma derivação do Expressionismo Abstrato, sem a conotação visceralmente ligada a Jackson Pollock que é o dripping, a tinta escorrida, pingada. Entretanto, inscrevendo planos e descrevendo linhas na pintura, Conrado apresenta traços que vão dos tênues, leves e finos, aos penetrantes e pesados, percorrendo toda a gama de expressões gráficas que remetem à mesma qualidade da procura incessante de Pollock pelas linhas vivificadas. Sem  o registro de patterns ou modelos, que hoje está provado que o pintor americano empregava, repetindo um mesmo padrão de gesto individualizado para cada obra – o que, na verdade, foi seu grande achado – a pintura de Conrado herda, em princípio, as questões interativas e inter-relacionais do Expressionismo Abstrato, exploradas em outra direção.

Disto resulta uma obra de fôlego, uma declaração de amor do artista à pintura. Ele desenvolveu uma pintura cujo leit-motiv é a essência mesma, sem contágios nem contaminações. São parábolas pintadas, que, uma vez executadas,  se tornam emblemáticas, transformando-se em intensas fábulas pictóricas, apontando um elo de ligação com "O Grito" de Edvard Munch, 18863-1944, quando um grito agoniado se congela, eternizando o momento da criação. 

São versões – e aqui entra, novamente, o repertório do artista – que não se repetem jamais, mas que detém algo específico em sua criação, sendo facilmente reconhecíveis como obras de Conrado, o que é extremamente difícil de conseguir em se tratando de pintura abstrata, e mais, com uso restrito de cores, e muito mais ainda, após a pluralidade de manifestações do abstrato contemporâneo. 

Deste modo, suas obras delineiam uma cosmogonia de formas abstratas, ao mesmo tempo em que, tal como um palimpsesto da vida, compõem a visão de mundo – weltanschauung que Conrado nos oferece.


Referências:

(1) BRUCKGRABER, I. ...[et al]. 20th Century Art - Museum Ludwig Cologne. Taschen. Köln.1996. pg.402
(2) OSTROWER, F. Criatividade e Processos de Criação. Imago Ed. Ltda. Rio de Janeiro.1976. pg.11
(3) READ, H. As Origens da Forma na Arte. 2ª. Ed. Zahar Editores. Rio de Janeiro. 1981. pg. 53