Original?
É Possível?

Maria José Justino

 

Original? Impossível entrar nesse tema sem se reportar às reflexões de Walter Benjamin quando trata do assunto do artista como criador, da reprodutibilidade técnica da arte e do conceito de aura. Para o filósofo, a aura só é possível na obra única, aquela que guarda autenticidade, que se funda no ritual. Concerne ao DNA da arte, ao seu trajeto e narrativa em toda a sua existência, sua história. Desse modo, quanto mais distante a obra, mais aurática. A possibilidade de reprodução via novas tecnologias atinge a aura, particularmente a da pintura, por se tratar de obra única. Ao mesmo tempo em que certa mística envolve e valoriza a obra única, esta também não escapa de se tornar mercadoria, propriedade, desejo de posse do objeto único, que agrega o valor de singularidade e autenticidade. As técnicas de reprodução, ao despojarem o objeto de seu véu, alteram a função da arte. Benjamin fala das novas técnicas do cinema e da fotografia, que inauguram mudanças na arte e na percepção do espectador, modificando a própria sensibilidade. Essas vicissitudes abrem caminho tanto para a tentativa da arte pela arte quanto para o exercício da arte política.

Mais tarde, com o advento da informática (tecnologias que Benjamin não alcançou), o artista busca distanciar-se da aura. Novas simbologias tomam feição, atingindo a identificação da arte com o conceito, de tal modo que “um ponto de vista conceitualista doutrinário diria que as duas características mais importantes da ‘obra conceitual ideal’ seriam possuir um correlativo linguístico exato, ou seja, que ela pudesse ser descrita e vivenciada em sua descrição e ser infinitamente repetível. Não deve possuir absolutamente nenhuma ‘aura’, nem qualquer espécie de singularidade” (Mel Bochner. In R. SMITH:184). Nas experiências conceituais, não há lugar para a arte pela arte – a arte passa a se relacionar com a política, a antropologia, a sociologia, a filosofia etc. Arte “pura” deixa de ter sentido. A arte contemporânea assimilou as modificações advindas dessas tecnologias, desde o cinema e a fotografia à era da computação e da informática.

Já a partir dos anos 60 do século XX, a arte se consolida como ideia, ou arte como filosofia, informação, linguística, matemática, autobiografia, crítica social, risco de vida. Os artistas experimentais retomam e dão curso ao lado revolucionário de Duchamp.

Conrado sofre esses influxos. Mas a sua aventura pela arte não significa uma passagem da visualidade (pintura) para a arte conceitual (fotos-frases). Nela convivem a pureza estética e o idealismo político. Conrado não abandona a pintura, embora externe um forte interesse pelas proposições artísticas analíticas. A estética contemplativa convive com a permutativa: pintura, fotos, textos, ideias. Não obstante, se ainda permanece presente o conceito de aura nas pinturas de Conrado, ele se esfacela nas fotos/imagens, com a possibilidade da reprodução mecânica, em que se altera o conceito de arte e de artista.

Nas pinturas, persiste o devaneio do artista criador. Trata-se de obras que dependem exclusivamente da mão, do gesto, ímpares. Pode haver métodos, mas a subjetividade impera. Contudo, essa subjetividade vertida nas fotos/frases é, por ocasião da feitura da obra, compartilhada com terceiros, sejam os técnicos, sejam os espectadores.

Conrado se equilibra em duas vertentes. Na pintura, exercita sua expressão, emoção, subjetividade. Mas precisa manifestar um desejo de racionalidade, que consuma nas fotos/textos. A inclinação de Conrado pela fotografia e pela citação busca explorar outras possibilidades que os novos meios emprestam à arte. Começa pelo recurso à fotografia: “A técnica mais exata pode dar às suas criações um valor mágico que um quadro nunca mais terá para nós […]. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico, como só a psicanálise revela o inconsciente pulsional” (BENJAMIN:94). Conrado experimenta esse relâmpago do inconsciente ao acoplar frases a imagens. Ao se apropriar de ideias e citações, alarga a fotografia e possibilita um outro universo simbólico, novos sentidos a serem habitados.

Ao se apropriar de representações, sejam imagens, sejam palavras (frases), constrói uma armadilha e aprisiona o espectador, que se vê compelido a refletir. O artista trabalha com frases e imagens anônimas. Quem são os autores das frases? Onde estão essas imagens? Algures e, ao mesmo tempo, muitas delas ao alcance de todos, disponíveis via internet ou dispersas na rua. Os autores? Perdidos no tempo. Em muitos trabalhos, Conrado recorre à colagem, à citação, à frase acima da imagem. Em outras, poucas, o artista não resiste e faz interferências. Como aquela No pain no gain transformou-se em No paint no gain, em que o artista reverencia a angústia cezanniana. E o que vem depois?, frase roubada do filme de Sorrentino, lembra-lhe o fluxo da criação, a inquietude que perturba o processo de todo artista. Saio com Deus, se não voltar, fico com ele é frase retirada de uma moto em São Paulo, essa Lilith devoradora de vidas. Ou ainda Prefiro a decadência à modernidade, registro que perturba nosso cotidiano.

Nessas fotos/frases há de Conrado uma precisão na escolha. Mas se há seleção de frases e imagens, mesmo naquelas disponíveis nas redes sociais, isso nos impele à pergunta: na escolha efetuada pelo artista não permanece uma autoria? Na pintura não há dúvida, o artista é o autor. E nessas outras experiências, onde fica a autoria? Quem é o criador? E o que é original?

Conrado se indaga: um artista pode se apropriar de uma imagem sem autorização? E quando se trata de obras em que o artista abdica da mão e delega a execução a terceiros? Ao mesmo tempo, quem é o autor quando a obra necessita do público para se consolidar? Nessas interpelações, ele não escapa da relação entre arte e poder, consciente de que favorecer a participação do público é um elogio à alteridade. Nessas escavações, surge a pergunta sobre o que pode ser considerado original hoje. Conrado acredita que, mesmo se apropriando de outra obra, o artista, ao ressignificar, pode ser original. Desse modo, a autoria torna-se fluida.

A pintura, que ainda guarda a aura, cede espaço para outra práxis: a política. Suas fotos/frases trazem fragmentos da realidade, imagens e conceitos. Deslocamento e ambiguidade. A coisa transitória, o efêmero. Tudo se passa como se a pintura não fosse mais suficiente para o exercício da arte, como se o artista tomasse tento ao lampejo benjaminiano: “O menor fragmento autêntico da realidade diz mais que a pintura” (BENJAMIN:128). Mesmo ainda acreditando na pintura, Conrado necessita de outra forma de diálogo. As imagens e a máquina ampliam as possibilidades. Coisas, palavras, imagens, fragmentos da realidade.

Na pintura, Conrado exercita a mão, o gesto, embora confesse que o seu processo de pintar não é tão espontâneo, que pintar exige esforço, que trabalha e retrabalha a tela. O conceito vai sendo gestado pela longa demora no expressionismo abstrato, affaire com a pintura. Elaboração esta que vai sendo tecida do intuitivo emocional (pintura) para as ideias (fotografia e interferências: palavras e imagens). A destruição (ou incorporação) traz a criação. Perturbado pelo original, que encontra na obra única, Conrado inclina-se cada vez mais para as citações, para o conceito, para a reprodutibilidade, mas não abandona a pintura.

Estamos diante de uma encruzilhada? É possível conciliar gesto (artesania) com ideias (conceitualismo). Em muitos artistas (conceituais e minimalistas), seria algo impossível. Nesse artista, essas duas práticas paralelas entrecruzam.

No percurso pela pintura, que continua sendo um lado forte da sua pesquisa, no exercício da mão (“Toda mão é consciência de ação”, já afirmava Bachelard:53), nas teias emaranhadas das linhas nervosas e na busca da energia pura, o artista desemboca no questionamento das imagens por meio das palavras, ou vice-versa. Contudo, já na contemplação (pintura) está presente o pensamento, e a chegada a essa outra fase (fotos/frases) o que faz é alargar o universo reflexivo.

A pintura sempre foi um relicário da contemplação, destinada ao olhar. Todavia é um equívoco restringi-la à esfera passiva. Mesmo no sentido místico, ela implica ação. Há uma distância significativa entre a pintura entendida como imitação (Platão) e a pintura moderna e contemporânea, entendida como representação e metafísica (Merleau-Ponty).

Já em Platão (O Banquete) havia uma ascendência à contemplação, não pela pintura, mas pelo amor: os graus da iniciação amorosa da admiração do belo em um único corpo para a surpreendente visão do belo em si, do desejo de possuir as coisas belas ao desejo de criá-las, de alcançar o belo real. Creio que em determinadas pinturas ainda cativas da contemplação (penso em Las Niñas de Vélasquez, ou nas pinturas de Goya, Hopper, Paula Rego, Lucien Freud) somos provocados, nós, espectadores, à profunda reflexão. Estão presentes nessas pinturas o poder, a paixão, a solidão, a violência. As imagens são alusivas, simbólicas, e nos forçam a pensar. Então, mesmo na contemplação, eu já tenho a reflexão. Certas pinturas se aproximam da metafísica. E a pintura, embora uma técnica tão antiga, pode ser contemporânea. “É contemporâneo toda e qualquer manifestação artística que ressoa em nós” (FARIAS:14).

Na aventura de Conrado pela arte, trata-se de uma construção que passa na elegância de seus desenhos e pinturas pela irreverência de De Kooning, pela depuração e simplicidade no diálogo silencioso com Twombly e pelo enfrentamento duchampiano de entender a pintura como metafísica: “Considero a pintura como um meio de expressão, e não como um fim […]. Em outros termos, a pintura não pode ser exclusivamente visual ou retiniana. Também tem de perturbar o cérebro, o nosso apetite de compreensão […]. O que me interessa é o lado intelectual das coisas, embora não me agrade o termo intelecto, demasiado seco, demasiado desprovido de expressão” (DUCHAMP; SWEENEY).

Mais tarde, ao inclinar-se às ideias, Conrado não nega a matéria, tampouco a forma, nem o gesto. Tudo contribui para a expressão. É um artista interessado no que se passa no mundo, nos acontecimentos, nos sentidos. O postulado da arte implica o erótico e o ascético.

As interrogações acadêmicas de Conrado, ocasião em que questionou a autoria em sua tese de doutorado, trouxeram-lhe perturbações para a prática artística. O devaneio da mão corteja os paradoxos, inclina-se para a metafísica. O fato de haver artistas que praticam a pintura abstrata com certa facilidade, apressados na produção, o incomoda. Para ele, a pintura carece de tempo, reclama ser trabalhada. Demora-se pintando um quadro. Regressa várias vezes às pinturas até considerá-las prontas. Massas coloridas, pigmentos, texturas, veladuras, tonalidades etc., tudo concorre para o processo. Desse modo, pintar para ele não é um ofício espontâneo. Resulta em pinturas livres, mas não infantis. Na outra experiência, nas fotos/textos, o olhar e a palavra, na interseção de imagens e frases apropriadas, subverte as referências, cria silêncios que ressignificam. São vazios engendrados entre a materialidade e as ideias. Signos inflados de aderência. Permeabilidade. Do produto para o conceito. Resulta num convite para o espectador pensar junto, refletir. “O público não é mais um agregado de cobaias hipnotizadas, e sim uma assembleia de pessoas interessadas” (BENJAMIN:79). Tudo transcorre como se na pintura Conrado se reservasse a autoria, para vê-la desvanecer-se nas fotos-imagens-palavras. Experimenta um prazer na provocação. Todo esse esforço estimula a dúvida: o que é autoria e quem é o autor? O que é arte? As frases são apanhadas ao léu, anônimas, soltas na internet, nas estradas, nas ruas. Se ainda é possível falar em autoria, ela está na escolha, no recolhimento desses achados. Como se trata de vários autores (das frases ou das imagens), a autoria fica diluída ou compartilhada. Se em sua pintura há uma turbulência emotiva, agora, nas fotos/frases é o espectador que é sacudido por sobressaltos.

Aqui, o processo vale mais que a materialidade física gestual. A relação artista-espectador fica mais complexa. Ou seja, o caos e o acaso jogam a seu favor. Na feitura, o artista detém o controle da mão e do cérebro, o olho não se separa do espírito; no produto, cria-se uma nova jurisdição. O controle é partilhado; descentraliza-se.

Do gesto ao conceito. Ao adentrar nas ideias não ignora princípios estéticos: ordem e simplicidade, desordem e organização, caos dominado. A imprevisibilidade e o aleatório convivem com a ordem. Verticalidade com horizontalidade. Minimalismo das ideias, simultaneidade de imagem/palavra. Conrado passa a ser um colecionador de frases e de imagens. Nessas apropriações, transforma seu ateliê num laboratório de pesquisa.

Se o século XX engendrou um afrouxamento das categorias pintura, escultura, gravura etc., Conrado busca esvanecer as fronteiras entre gesto e conceito, tanto na obra quanto na autoria. O artista coloniza ou é colonizado pelos meios?

Conrado manipula, não a paisagem, como fazem os Land Art, mas a própria sociabilidade, operando a arte como poder. Poder não como substância, mas como prática social, circulação. Ou melhor, micropoder (ou poder periférico, se pensarmos no Estado ou no modelo científico). A arte como fenômeno social, um campo de saber, experiência singular, é, por excelência, um lugar de poder. E “o poder funciona e se exerce em rede […] o poder não se aplica aos indivíduos, passa por eles” (FOUCAULT:183). Se o poder político diz respeito ao poder do homem sobre outro homem, na arte o poder passa pela autoridade do artista, do curador, do crítico e, fundamentalmente, do público. Hoje a arte está na berlinda. O que é arte? O que é artista? Quando a autoria é questionada, o poder é diluído, descentralizado. Trata-se doravante da relação entre artista e espectador, vale dizer, entre criador e fruidor. Subjetividade e objetividade são regiões coetâneas. Uma se mescla à outra; o que está dentro está fora e vice-versa. “Não suporto seres fatigados e enfraquecidos que se vestem de sabedoria e apresentam um olhar objetivo” (NIETZSCHE:189). Todo olhar é carregado de cosmos.

Conrado trabalha a esfera conceitual sem abandonar o enfoque formalista. Instala-se nas fronteiras entre estético e social, entre arte e política. Passagens entre o pictórico e o literal, entre a fotografia e a mente. Todo o seu recente trabalho equilibra-se na ideia de propriedade: das imagens às ideias. Dissolução do objeto (arte) e das relações criador-fruidor; apropriação e anonimato; a interação do público com as propostas do artista. Tudo que é sólido se desmancha no sistema. Nem utopia nem distopia. Passagem ou rito de passagem: nascimento e morte, entrada em outra dimensão. Conrado, como Ísis, recolhendo fragmentos da existência humana,  afirma-se como um ser compassivo, sensível às tragédias humanas, capaz de compartilhar suas descobertas e achados.

Por isso mesmo, incomoda-se quando as palavras são polarizadas. É preciso romper com todo determinismo. Busca oferecer uma obra que seja aberta. As palavras na sua dimensão tanto poética quanto discursiva. No jogo entre imagem e palavras instala-se um espaço de estranhamento (Brecht?). A frase em si já se põe como lugar de interpretação; sobreposta à imagem, pode criar conforto ou desconforto – conforme à vivência do espectador. A inconsistência da vida, a indeterminação: o jogo do artista reside em construir, destruir, conservar, em oferecer proposições. Dessacraliza-se a arte.

Sua pesquisa, desde a exposição em Londres (2017), alimenta-se cada vez mais de bancos de imagens. Imagens que, soltas na vida, são de todos, estão liberadas da posse. Tudo está disponível, ao alcance nas redes sociais ou nos encontros fortuitos: frases intempestivas surpreendidas algures – em caminhões, motos, no cinema, na literatura, na rua ou em prosa com amigos. Tudo é fonte que alimenta. Com raras exceções, não as modifica, cita-as literalmente (fotos e frases) como as encontra, desfrutando do que pode surgir da junção de imagem e texto. É exatamente esse confronto de frases e imagens aleatórias que cria a perturbação, ativa o cérebro, estimula a alma. Mas é preciso um equilíbrio entre a pintura e o conceito: nem só gesto, nem só racionalidade. Como lembra o poeta: “É preciso também não ter filosofia nenhuma. Com filosofia não há árvores: há ideias apenas” (PESSOA:781). O “prazer intelectual e o estético podem fundir-se nessa experiência quando o trabalho é tanto visualmente forte quanto teoricamente complexo” (LIPPARD).

Reflexão e gozo. Conrado nos devolve o prazer de sentir e pensar.


Referências:

BACHELARD, Gaston. O Direito de Sonhar. São Paulo: Difel, 1986.
BENJAMIN, Walter. Pequena História da fotografia; O autor como produtor; A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica; Que é o teatro épico? In Magia e Técnica, Arte Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
DUCHAMP, Marcel. Dossier Revista Nombres, Córdoba, Argentina,  p. 177 a 185). Entrevistado por James Johnson Sweeney.
FARIAS, Agnaldo. Arte Brasileira Hoje. São Paulo: PubliFolha, 2002.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1990.
LIPPARD, Lucy. CHANDLER, John. Dematerialization of Art/Conceptual Art. Texto escrito no final de 1967 e originalmente publicado em Art International, n. 12, fevereiro de 1968: 31-36.
NIETZSCHE, F. La Généalogie de la Morale. Paris: Gallimard,1989.
PESSOA, Fernando. Poemas Inconjuntos. In Obra Poética e em Prosa, vol.1. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986.
SMITH, R. Arte Conceitual. In STANGOS, N. Conceitos de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1993.