Poéticas da
Contra-Memória
Katia Canton
Katia Canton é PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York. É professora livre-docente da Universidade de São Paulo, curadora do MAC e autora de vários livros envolvendo arte e narrativa.
Marcelo Conrado parece criar uma escritura de tempos. Ele também faz pinturas e xilogravuras. Mas, em sua obra, não se trata de construir uma fluidez informe. Conrado reclama um corpo. Defronta-se com a matéria.
É por isso que suas linhas parecem artérias, veias. Que por sua vez, geram rastros e parecem desenhar uma linguagem secreta, decifrável apenas no momentum, no instante exato do contato dos instrumentos - pincéis, goivas, buris - com as mãos.
É nesse sentido que a imagem gerada por Conrado alude a uma memória corporal. É como se o artista estivesse criando um contraponto ao excesso de virtualidades da condição contemporânea.
Tudo pisca e se esvai no ritmo eletrizante das luzes de néon. Como atesta o filósofo Peter Pál Pelbart:
“O regime temporal que preside nosso cotidiano sofreu uma mutação tão desorientadora nas últimas décadas que se alterou inteiramente nossa relação com o passado, nossa idéia de futuro, nossa experiência do presente, nossa vivência do instante, nossa fantasia de eternidade. A espessura do próprio tempo se evapora a olhos vistos, nem mais parecemos habitá-lo, como o mostrou Paul Virilio, e sim a velocidade instantânea, ou a fosforescência das imagens, ou os bits de informação. E cada vez mais se impõe a evidência de que o tempo sucessivo, direcionado, encadeado parece ter definitivamente entrado em colapso para achatar-se numa instantaneidade hipnótica e esvaziada” (3).
As incisões feitas na madeira e os lastros de tinta sobre as telas são ações que demandam um tempo real. Um tempo de carne e densidade. É como se se tornassem tatuagens feitas sobre a pele da memória de um corpo. A obra é um corpo que pede para expressar-se.
Uma analogia possível é aquela em que grafiteiros escrevem e desenham sobre as paredes da cidade, fazendo escapar, naqueles gestos, o desejo de um grito materializado nos traços.
Essa é a escritura: linhas e traços buscando a verdade. A síntese. É como se Conrado desejasse produzir uma nova forma de escrever o mundo, começando tudo de novo - refazendo marcas, abandonando uma história cujas narrativas já foram esgotadas em sua própria previsibilidade. Marcelo Conrado propõe a construção de um corpo vivo, livre das repetições monótonas e insípidas de uma memória pré-fabricada. Ele convoca a criação de uma outra, renovada memória, feita apenas do instante. Feita da experiência cravada na força vital do próprio corpo, onde não são esquecidas as feridas. Tampouco o gozo.
Como atesta o sociólogo Edgard Morin, experimentar a vida de forma poética, artística, significa agregar gozo e sofrimento e expandir as percepções e sensações que o mundo nos proporciona.
O mundo em que vivemos talvez seja um mundo de aparências, a espuma de uma realidade mais profunda que escapa ao tempo, ao espaço, a nossos sentidos e ao nosso entendimento. Mas nosso mundo da separação, da dispersão, da finitude significa também o mundo da atração, do reencontro, da exaltação. E estamos plenamente imersos nesse mundo que é o de nossos sofrimentos, felicidades e amores. Não experimentá-lo é evitar o sofrimento, mas também não haverá o gozo (4).
Tudo leva o tempo que leva o próprio corpo na fabricação dessa escritura. A experiência da arte, afinal, clama por um tempo de intensidades.
Notas:
(1). Canção Flores, dos Titãs (Tony Bellotto/Sérgio Britto/Charles Gavin/ Paulo Miklos).
(2). em C. Colwell, Deleuze and Foucault: Series, Event, Genealogy, in” Theory and Event 1, 1997.
(3). “Tempos Agonísticos” em Sentidos e Arte Contemporânea. Seminários Internacionais da Vale do Rio Doce, 2007. Katia Canton e Fernando Pessoa, organizadores.
(4). em Amor, Poesia, Sabedoria. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.